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O BURACO
DO SUICÍDIO

Num Reino distante de toda a civilização, em meados do século 19, vive um povo avulso ao restante do mundo. As leis e ordens da cidadela é ditada pelo Rei Alziro, com o apoio de sua cúpula. Na verdade, Alziro está mais para um ditador que exige ser chamado de rei. Suas leis são severas, afligindo a vida de toda a população, penalizando sem qualquer piedade aqueles que a infringem.

As mulheres são as que mais sofrem. Dentre as centenas de regras, há três que a martirizam: só podem ter dois filhos e tem que nascer absolutamente saudável; não podem em hipótese alguma trabalhar ou fazer alguma atividade que venha a ser remunerada; não podem beijar antes dos 18 anos e o beijo tem que ser no marido. No caso desta última, a cúpula do Rei, sob sua supervisão, é quem delega o marido. Ela tem de ir a uma instituição pública que presta serviços sociais com todos seus documentos pessoais, assim que completa a maioridade. Lá tem uma lista de rapazes que será escolhido para ela com a votação de uma bancada, considerando condição social, profissão, religião e demais atributos que o próprio ditador impôs, visando unicamente a probabilidade de progresso da cidade A infração para essas regras é uma só: guilhotina.

Há espiões espalhados por todos os lados. A cidade está cercada por penhascos, a única saída existente é barrada por uma patrulha militar. Ninguém entra, ninguém sai.

As jovens Amanda e Zora vivem com medo de tudo o que a mãe lhes fala, dos casos já ocorridos na região com quem havia desobedecido as inúmeras leis. A mãe lhes dá muitos conselhos para não acabarem como muitas meninas vítimas da guilhotina. Elas obedecem sem pestanejar, a rotina se resume da casa para escola e da escola para casa. A escola, no caso, é exclusiva para meninas, onde ensina como ser a melhor dona de casa.

E neste momento, Amanda e Zora estão saindo do colégio. Andando nos arredores da grande fachada, que mais parece uma fortaleza, Zora diz:

— Estou com fome. Hoje esqueci de trazer lanche de casa.

— Eu também estou. Voltamos lá dentro para comprar na cantina?

— Já fechou a cantina. E até chegar em casa eu acho que caio dura de tanta fome.

— Então o que você sugere?

— O que acha de comermos numa lanchonete qualquer na rua?

— Você está louca, irmãzinha? Jamais podemos cometer essa infração. Lembra a ordem de mamã: de casa para escola, da escola para casa.

— Mas será por uns minutos apenas, ora. Que mal há? Compraremos um lanche e depois seguiremos para casa.

Caminham para a lanchonete. Compram o lanche e no ato de sair, Zora vê um rapaz e sente-se muito atraída.

— Espere, irmãzinha — ela para e puxa o braço de Amanda para dentro da lanchonete.

— O que foi? — Amanda aparenta desespero. — Vamos embora! Antes que nos peguem.  Lembre-se que a mamãe diz que há espias por todos os lados observando o que fazemos.

O Rapaz também mira os olhos nas donzelas. Ele sai do balcão e se aproxima.

— Vocês estudam na escola de Donzelas, não é?

— Estudamos sim — respondeu Zora.

Ambos ficam vermelhos. Amanda puxa o braço da irmã.

— Como você sabe? — pergunta Zora.

— Vamos para casa — a irmã sussurra baixinho em seu ouvido.

O Rapaz interrompe:

— Eu vejo vocês direto saindo de lá.

Elas fazem uma expressão assustada, mas parece que Zora não está tão assustada assim.

— Então você fica nos observando, mocinho. — ela diz. — Por acaso você é um dos espiões?

— Que afronta contra mim! Sou um cidadão igual a vocês. Os espiões ficam ocultos em lugares que ninguém vê. Eles não se disfarçam.

— Então fico mais tranquila. Sabia que é a primeira vez que falo com um homem?

Amanda, neste momento, puxa o braço da irmã com força.

— Vamos embora agora mesmo!

— Esperem por mim, irei com vocês, é o mesmo caminho que eu faço.

Por todo o trajeto o Rapaz não fecha a boca nem por um segundo. Amanda anda apressadamente, evitando olhar para os lados, enquanto Zora sorri ouvindo o Rapaz contar suas aventuras com teu amigo. De repente surge bem na frente deles o tal Amigo.

— Que coincidência! Falava de você neste momento para as minhas novas amigas.

O Amigo mira os olhos nelas.

— E você não irá me apresentar essas novas amigas?

— Oh, claro. Esta é Zora e está é... Perdão, esqueci seu nome.

— Amanda — quando ela bate os olhos no Amigo, seu semblante se transforma, ela sente seu coração acelerar, algo que nunca havia sentido antes.

E com ele foi a mesma coisa.

Os quatro, então, continuam o trajeto. Amanda e o Amigo ficam em silêncio, enquanto o Rapaz fala igual gralha e Zora se resume a gargalhar.

Eles chegam num trecho em que o caminho está bloqueado, devido obras na infraestrutura, e a única passagem para contornar para o outro lado é um caminho estreito de terra dentro de um emaranhado de mato. Amanda fica receosa de entrar, ela parou assistindo os outros avançarem.

— Vamos, bobinha, ou prefere passar a noite por aqui? — diz Zora.

Entram todos ali. Eles vão caminhando em silêncio pela estreita estrada de terra, quando Amanda se dá conta que quem está do seu lado não é mais sua irmã, mas o Amigo. Ela para abruptamente, ele também.

— Cadê minha irmã? — ela pergunta.

Ambos olham para trás e lá estão os outros dois, aos beijos.

Amanda abre a boca, arregala os olhos, aquilo que via era semelhante a ver o próprio diabo.

— Você está bem? — pergunta o amigo. — É por causa dos espiões? Calma, eles não chegam aqui no meio do mato.

Isso fez Amanda refletir, os olhos começam a brilhar. Aos poucos, o Amigo foi chegando mais perto, os braços dele começaram a enlaça-la. Quando menos percebem, já estão roçando os lábios um no outro.

As meninas chegam em casa alguns minutos depois. Correm para o quarto.

— Estamos encrencadas! — diz Amanda, apavorada.

— Irmãzinha, ninguém viu a gente, ora. Naquele mato não havia ninguém além de nós quatro.

— Mas eles estão por todos os lados, você sabe que mamãe sempre diz que não há lugar algum que os olhos deles não nos alcançam.

Alguém bateu na porta do quarto. Amanda soltou um grito bem alto.

— O que está havendo aí dentro? — era a voz da Mãe.

Ao entrar, ela notou a visível palidez de Amanda.

— O que está havendo, crianças?

Ficaram mudas, observando a Mãe e trocando olhares entre elas, numa tensão soturna. Bateram na porta da sala.

— Vou atender, e quando eu subir quero saber exatamente o que se passa, mocinhas.

A Mãe saiu e elas permaneceram trocando olhares aflitos, o coração acelerado.

— Você acha que são... — diz Zora.

Amanda não consegue falar uma palavra. Foi logo em seguida que a Mãe gritou lá embaixo: “calma, calma, o que vocês querem?” E depois, passos rápidos na escada. Zora corre, fecha a porta e se mantém pressionando suas costas, com os olhos arregalados, fitando Amanda. Depois de um terrível silêncio, começam a bater fortemente na porta, tantas e tantas vezes até que ela foi arrombada. Há gritaria e tumulto, as irmãs tentam escapar pela janela, mas são capturadas pelos três militares.

 

-

 

No palanque, diante de uma vasta multidão, está o Rei Alziro no centro, à sua direita está Amanda, e à sua esquerda, Zora, ambas com um roupão preto largo.

— Como bem sabem, essas duas indigentes foram pegas aos beijos pela praça. De acordo com a nossa lei, este ato requer uma penalidade, e esta é a realização do uso da guilhotina. Ainda de acordo com a lei, como temos a infração simultânea por duas irmãs de sangue, isso implica na escolha por parte da mãe de qual delas pagará pelo importuno.

A Mãe está no centro, de frente para Alziro, mas abaixo do palanque, sob uma pequena tribuna, aos prantos, olhos fechados, não quer contemplar tuas duas meninas em cima do tão temido palanque.

— Vamos, mulher, pode lançar tua escolha. Qual das duas infratoras prefere que perca a cabeça?

A Mãe começa uma crise de convulsão, estremece toda, vai caindo no chão e, estirada, se debate, a boca salivando.

— Levem-na para o hospital — ordena Alziro aos seus homens. — Vamos ter de aguardar ela se recuperar para dar a sua decisão.

Retiram a Mãe do meio da multidão e põe-na numa maca para ser levada para o hospital. Ela, porém, abrindo a fresta do olho, se vê sozinha ali na maca, seria lançada na carruagem em poucos instantes. Tem de pensar rápido e agir ainda mais rápido.  Ela salta da maca e corre velozmente para a beira do precipício, extremo da cidade, onde muitos já se suicidaram dali. O Rei, de cima do palanque, só a nota quando ela grita:

— Ei! Aqui!

— Droga! O que a mulher faz à beira do Buraco do Suicídio?! — grita ele.

— Eu morro no lugar das minhas filhas! — e se joga no buraco.

O Buraco do Suicídio é um precipício que recebeu esse nome devido a alta demanda de pessoas que dali se jogaram. Todos que ali se jogam, para se livrar daquela vida escrava de um governo, caem num rio altamente violento pelas correntezas, que levam o corpo para dentro de uma caverna escura e estreita, a muitos metros abaixo deles. Ninguém sabe para onde dá essa caverna, só sabem que todos que ali se jogam são levados pela correnteza e nunca retornam.

As irmãs, então, são levadas para uma cela, onde aguardariam até o dia seguinte para que o júri decida qual delas seria a escolhida para a guilhotina.

Encarceradas, deitadas no chão frio e úmido, e abraçadas uma à outra, elas choram amargamente.

— Foi tudo minha culpa — Zora soluça. — Perdoe-me, irmãzinha.

— Ninguém foi culpada. De nada adianta lastimar-se agora pela culpa ou apontarmos o culpado. O que temos de aproveitar é esse mísero momento que podemos passar juntas, pois amanhã pela manhã uma de nós duas não estará mais aqui.  Espero que decidem por você, maninha, pois não quero que você venha a sofrer neste lugar horrível, sozinha, sem eu nem mamãe. Prefiro sofrer em seu lugar.

E Zora chora ainda mais e aperta tua irmã contra si. Aparece a carcereira com um prato de sopa fria.

— Comida! — ela grita.

As meninas se prontificam a levantar-se. A megera entra na cela e joga o único prato no chão, que seria para dividirem.

— Comem tudo, animais! — ela diz tão alto que se ouve por todo o campo de concentração.

Mas logo em seguida as irmãs levam um baque, a megera, de uma hora para outra, muda seu olhar, que começa a transbordar, e levanta levemente os óculos, num sorriso cheio de esperança.

— Meus amores, a gente vai sair desse inferno!

Ali está a Mãe metida num uniforme de carcereira.

Antes de elas terem tempo de pensar, a Mãe procura qualquer coisa nas paredes, até dizer baixinho:

— Achei!

Ela retira uma grande placa de concreto da parede, visivelmente ali para camuflar a existência de um buraco.

— Vamos! Vêm atrás de mim.

Imergem no buraco e andam engatinhando por um túnel de uma extensão absurdamente longa. Podem, enfim, avistar uma fresta de luz, lá adiante. Aceleram. Saem do túnel. As três desembocam à beira do Buraco do Suicídio, o mesmo no qual a Mãe se jogou um dia antes.

— O que vamos fazer? — pergunta as duas irmãs, espantadas.

— Vamos ser livres dessa escravidão. Vou contar até três, depois vamos todas pular.

As irmãs se entreolham, depois fitam a mãe.

— Fiquem tranquilas, não vamos morrer.

Permanecem fitando-a.

— Vocês confiam em mim?

— Sim! — elas respondem sorrindo.

As três saltam buraco abaixo até caírem no rio. A forte correnteza as leva para a caverna estreita e escura.

Mais ou menos 1,5 km depois elas saem do outro lado da caverna. Um lugar absolutamente fantástico, as águas da extensão do rio são cristalinas, há peixes em abundância. Sobre o rio há uma ponte grande e longa, que funciona um parque de diversões. Várias pessoas estão ali sob altos gritos, pais e filhos, namorados, cachorros, tem de tudo naquele parque.

As duas irmãs contemplam aquilo, ficam em silêncio por um tempo.

— Mãe, onde... onde estamos? — pergunta Amanda, os olhos refletindo o que sua alma sentia.

Agora elas já saíram do rio e estão andando no gramado bem verde do parque. A mãe conta:

— Quando eu me joguei do Buraco do Suicídio, minha intenção era morrer para não ver nenhuma de vocês morrendo. Então a correnteza me jogou para a caverna, a mesma que supostamente matou todos os que aqui se jogaram. Mas o que eu descobri foi isso que vocês estão vendo, do outro lado da caverna há uma cidade, que posso chamar de paraíso. Este parque é só uma amostra do que tem por aqui. Aqui tem muito verde, tem pessoas felizes que vivem cada uma fazendo seu mundo, elas que decidem com quem se casam, se vão se casar um dia ou não. Aqui as mulheres trabalham e podem exercer as mesmas funções dos homens. Aqui pode ter quantos filhos quiser, ou não ter nenhum. A regra aqui é unicamente pela igualdade de todos e o respeito ao indivíduo.

As irmãs ficam boquiaberta.

— E sabem quem são os moradores desta cidade?

— Quem? — perguntam em uníssono.

— As pessoas que se jogaram do Buraco do Suicídio, que agora eu vou chama-lo de Buraco da Libertação.

As irmãs ficam em silêncio por um tempo, tentando absorver tudo isso.

— E por que ninguém voltou até a cidadela para salvar o povo desinformado e destinado a escravidão? — pergunta Zora.

— As pessoas tem medo de voltar lá, medo de serem pegas. Preferem deixa-los lá sem saber disso ou invés de arriscarem suas próprias vidas para salvá-las.

— E como a senhora voltou? — pergunta Amanda. — Como sabia onde estávamos? Como entrou disfarçada de carcereira? Como sabia do túnel escondido na parede?

Elas param e a Mãe pega em sua mãos.

— Assim que eu soube disso tudo eu pensei “vou correr de volta enquanto tenho tempo de salvar meus dois bebês”.  Nadei de volta, escalei as paredes do Buraco da Libertação e entrei de novo na cidadela. Corri para a casa de uma amiga-confidente para perguntar para aonde haviam levado vocês, ela estava em meio à multidão quando vocês seriam mortas. Me disse que vocês foram trancadas numa cela no campo de concentração.  Fui até lá e fiquei de tocaia atrás de uma árvore aguardando alguém sair de lá.

Logo depois, chega uma senhora e entra na conversa:

— Então eu sai, ia comprar o kit de sopas das prisioneiras, a mãe de vocês me seguiu e me relatou tudo. Eu me sentia também prisioneira daquela cidade, já havia cogitado muitas vezes em me jogar do Buraco do Suicídio, mas me faltava coragem. Eu era uma mulher infeliz, e ainda era carcereira ali sem nenhuma remuneração, por causa da lei que nos impede de ganhar dinheiro. Eu era obrigada a trabalhar para eles de forma voluntária, ou então eles me matariam. Eu estava quase renunciando e escolhendo a morte, quando tua mãe me revelou o verdadeiro Buraco do Suicídio. Minha esperança renasceu, eu queria sumir daquele lugar. Como eu quem estava cuidando de vocês, passei meu uniforme para ela, expliquei como chegar até a cela e graças ao bom Deus eles não tem muito controle das inúmeras carcereiras que trabalham ali, são tantas que nem sabe quem é quem.  E o restante da história acho que vocês já sabem — ela deu um sorrisinho.

As irmãs fitam a Mãe e a ex carcereira.

— E agora me diz — pergunta Amanda —, da onde surgiu aquele túnel coberto por uma placa de concreto?

— Essa pergunta, meu amor — responde a ex carcereira —, até eu me faço. Descobri aquele túnel certa vez e nunca contei a ninguém.

A Mãe e a ex carcereira voltam à cidadela e espalham a boa notícia a todos os homens, mulheres e crianças. Todos se lançam no Buraco do Suicídio. O Rei Alziro tenta frear a onda abrupta dos corajosos que preferem a morte, mas não tem controle. A cidadela se esvazia completamente, ficam só o Rei e seus súditos. O Rei, junto com a sua cúpula de apenas doze homens, sobrevive ainda por um ano, quando começa a faltar alimento e serviços devido à falta de pessoas na cidade.  Eles decidem, por fim, a atirar um na cabeça do outro, sobrando apenas um, e ele atira em si mesmo. Preferiram isso a morrerem afogados no Buraco do Suicídio.

Publicado em 10/04/2020, às 16:20

© 2025. Escritor Guilherme Maia. Contato: (11) 94285-4376

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